1999 foi um ano-chave para a televisão brasileira. A Rede Manchete saia do ar e sendo adquirida por um grupo de telecomunicações, a Tele-TV, deu lugar para a Rede TV!. Enquanto isso, começavam a pipocar as notícias de que a CNT e a TV Gazeta iam encerrar uma parceria de sucesso iniciada em 1992, onde cada uma trilharia seu próprio caminho. Se por um lado, a dupla Marcelo & Amílcare tinham pressa para lançar a nova emissora no mercado televisivo, inaugurando-a no feriado da Proclamação da República, em plena segunda-feira, por outro a separação entre TV Gazeta e CNT, cujo relacionamento foi marcado por tapas e beijos nos bastidores desde agosto, tinha data marcada para acontecer: 1º de junho do ano 2000, uma quinta-feira (bem que podiam ter prorrogado pro final de semana como demonstração de respeito ao público).
Aliás, foi justamente em agosto de 1999 que surgiu um episódio crucial que poderia até fazer com que o Grupo Tele-TV esperasse mais um pouco e adiasse o lançamento nacional da sua nova rede de TV. A empresa era dona de uma produtora independente, a TV Ômega, que coproduzia com a CNT o programa Festa do Mallandro. Em maio do mesmo ano, a atração comandada por Sérgio Mallandro, abarrotada de pegadinhas voyeur e testes fajutos de fidelidade, consegue liderar a audiência em São Paulo e pouco depois, a mídia da época explora uma nota de bastidores que colocaria em xeque a ascensão ibopística da CNT/Gazeta nas noites de sábado: Nova dona da ex-Manchete quer trazer Mallandro para sua grade de programação.
Do outro lado, o relacionamento entre TV Gazeta e CNT começa a azedar. A emissora da Avenida Paulista reivindicava autonomia para expandir seu sinal em todo o interior de São Paulo e também havia questões comerciais porque a CNT não queria perder de jeito algum o sinal VHF no maior mercado do país, São Paulo. O estopim foi a inauguração de uma geradora da CNT em Americana, localizada na região de Campinas, interior paulista, que retransmitia a programa da rede gerada de Curitiba e mesclava algumas atrações regionais como informativos, policialescos e atrações esportivas. A Gazeta, por sua vez, implicava pelo fato de retransmitir o sinal da CNT à contragosto porque, segundo sua diretoria, o público paulista não possui nenhum interesse em assistir uma programação de forte conteúdo regional paranaense, pois ela sempre valorizou os assuntos e os costumes de São Paulo desde quando entrou no ar em 1970.
Percebam, tudo se encaixa. O equívoco de um lado representou a decadência de outro, comparem a situação de ambas atualmente ("dever de casa" aos seguidores do blog). Tanto o Grupo Tele-TV quanto os Martinez poderiam sim terem formado uma harmoniosa sociedade para que, juntas, formassem uma quinta rede de televisão e que corresse por fora da guerra de audiência entre as poderosas Globo, SBT, Record e Band. Os interesses seriam conciliatórios: o Grupo Tele-TV era dona das cinco emissoras da ex-Rede Manchete (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife e Fortaleza), herdou o quadro de funcionários da antecessora e tinha pressa para "entrar na briga", enquanto que a Família Martinez dispunha de uma rede com cinco estações geradoras (Curitiba, Londrina, Rio de Janeiro, Americana/Campinas e Campo Grande) liderada por um influente deputado federal que tinha cacife político suficiente para unir suas forças com as da dupla Marcelo & Amílcare na montagem dessa quinta rede de televisão e até para negociar o pagamento dos salários atrasados da Manchete, entre outras coisas. Ele era José Carlos Martinez.
Notaram que até hoje (antes da chegada do sinal digital) a CNT não tem sinal VHF em São Paulo como a Rede TV! não tem sinal VHF em Curitiba? Pois é! A CNT tinha até uma boa estrutura para permitir divisões de rede e cada geradora sua produzia programas de conteúdo local, coisa que a Rede TV! não tinha. No máximo, ela possuía uns pequenos escritórios nas capitais nordestinas onde uma pequena equipe de reportagem produzia matérias para o telejornal da rede, até porque a Justiça trancou os antigos estúdios da Manchete tanto em Recife quanto em Fortaleza, impossibilitando a produção regional e obrigando os telespectadores das duas cidades a assistirem o sinal gerado 100% de São Paulo (mas nada como um político nessa sociedade com a Rede TV! para ter resolvido essa pendenga). As atenções do Grupo Tele-TV eram voltadas exclusivamente na produção de programas da sede matriz em Alphaville, região nobre localizado na divisa São Paulo/Barueri.
Pesquisando a situação de CNT e Rede TV! na "transição de milênio", chego a conclusão de que, sim, ambas deveriam e mereciam se juntar e formar a quinta rede de televisão do Brasil, não fosse a pressa de Marcelo & Amílcare e a frustrante tentativa de expansão dos Martinez. Dessa forma, os problemas dessa sociedade seriam diminutos e seria uma opção generosa para um tipo específico de público que queria fugir da agressividade das grandes emissoras. Para isso, a Rede TV! deveria ter adiado sua estreia nacional para azeitar ainda mais os formatos de suas principais atrações (foram apenas 4 meses de preparação e o resultado foi catastrófico, afetando para sempre seu futuro destino), enquanto que a CNT prorrogaria até sábado, 3 de junho, sua despedida definitiva da TV Gazeta de São Paulo (originalmente, não houve tempo nem do Sérgio Mallandro fazer programa especial de despedida oficial) e entraria em hibernação por uma semana para se alinhar com a Tele-TV e montar uma grade experimental de um mês, cuja data ideal para a "inauguração" deveria ser 10 de julho do ano 2000. E ficaria a dúvida, qual seria o nome dessa rede: iam manter a marca "CNT" ou adotariam a nova denominação "Rede TV!"? Como "Rede TV!" é um nome extremamente óbvio para uma emissora de televisão, eu optaria pela já existente "CNT" e essa nova fase seria chamada de "Nova CNT, Renovando com o Brasil".
Vejam como seria essa quinta rede, a começar pelo conjunto de emissoras geradoras e algumas afiliadas importantes da época que ambas dispunham, pelo visto não ficaria nada a dever pra ninguém (e com o tempo essa rede iria crescer e muito):
São Paulo - canal 9 (Matriz Geradora)
Rio de Janeiro - canais 6 e 9* (Geradora)
Belo Horizonte - canal 4 (Geradora)
Recife - canal 6 (Geradora)
Fortaleza - canal 2 (Geradora)
Curitiba - canal 6 (Geradora)
Campo Grande - canal 2 (Geradora)
Goiânia - canal 6 (Geradora)
Campinas - canal 13** (Geradora)
Londrina - canal 7 (Geradora)
Porto Alegre - canal 4 (TV Pampa)
Brasília - canal 6 (TV Brasília)
Cuiabá - canal 5 (TV Rondon)
Palmas - canal 9 (TV Serra do Carmo)
Rio Branco - canal 11 (TV Gazeta)
Boa Vista - canal 12 (TV Norte)
Macapá - canal 8 (TV Equatorial)
São Luís do Maranhão - canal 6 (TV Cidade)
Imperatriz-MA - canal 5 (TV Capital)
Lages-SC - canal 10 (Sistema Catarinense de Comunicação)
* A Tele-TV era proprietária do canal 6, enquanto que a CNT gerava programação pelo canal 9. Este seria o único dilema da sociedade, mas o prédio gerador da General Padilha em São Cristóvão, seria mantido. O prefixo que tivesse melhor potência de penetração de sinal na capital fluminense seria a retransmissora oficial da nova rede, enquanto que a outra seria colocada a venda. Eu optaria pelo canal 6, já que o canal 9, cuja razão social é denominada até hoje TV Corcovado, devido a seu alcance limitado em algumas regiões do Rio de Janeiro, ou seria vendida ou voltaria a ser independente, como a TV Gazeta de São Paulo.
** Durante um período, o Ministério das Comunicações liberou o canal 13 de Campinas para que a CNT realizasse transmissões experimentais de seu sinal matriz para aquela região enquanto não era inaugurada a nova sede regional de Americana, cuja concessão de prefixo fora outorgada entre 98 e 99, o canal 23 (e posteriormente canal 52).
A fase experimental que estou simulando seria baseada em filmes de longa-metragem retiradas do lote de ambas e distribuídas em torno de uma grande transmissão esportiva. Como a Rede TV! havia anunciado a transmissão da Liga dos Campeões (ou Copa da UEFA como anunciou em seus "teasers") e não haveria tempo para mostrar uma partida sequer, poderia ter negociado com os detentores dos direitos de transmissão das competições UEFA uma troca: compensar a "ausência" da Liga dos Campeões 99/2000 na TV aberta pela exibição da Eurocopa 2000 (que originalmente não foi mostrada por nenhuma emissora aberta no Brasil), marcando assim a fase de testes da "Nova CNT" e anunciando a nova programação nos intervalos dos jogos (isso sem contar um grande trailer na abertura e no encerramento das atividades do dia).
Quanto a grade de programação definitiva, imaginem o cast de apresentadores que a rede teria a sua disposição, isso a partir de 10 de julho do ano 2000, segunda-feira. Veja como ficaria:
Segunda/Sexta
07h00 - Educativo
07h30 - CNT Notícias - noticiário de rede gerado de Brasília
08h00 - Galera da TV - com Andréa Sorvetão
10h00 - Programa da Lili - com Liliana Rodriguez (gerado do Rio de Janeiro)
12h00 - CNT Esporte - Edição Local
12h30 - RTV - Jornal Local
13h00 - Divisão de Rede: Jeannie é um Gênio e A Feiticeira (para quem não tivesse programas locais)
14h00 - A Casa é Sua - com Sônia Abrão (gerado de São Paulo)
16h00 - Mãe de Gravata - com Ronnie Von (gerado de São Paulo)
18h00 - Cadeia Nacional - com Luiz Carlos Alborghetti (gerado de Curitiba)
19h00 - RTV - Jornal Local
19h15 - Superpop - com Adriane Galisteu
20h45 - Jornal da CNT - noticiário de rede gerado de São Paulo
21h30 - CNT Esporte - Edição Nacional
21h45 - Faixa Variada - toda ela gerada de São Paulo:
Eu Vi na TV - com João Kléber (segunda) / Vida de Artista - produção independente (terça) / Família Sertaneja - com Marcelo Costa (quarta) / Cine Total (quinta) / Programa Gutto Moreno - com o próprio (sexta)
23h45 - CNT Economia - com Denise Campos de Toledo (gerado de São Paulo)
24h00 - Gabi - com Marília Gabriela (gerado de São Paulo)
01h00 - Perfil - com Otávio Mesquita (gerado de São Paulo)
02h00 - Cinema na TV
04h00 - Puro Êxtase - produção independente
Sábado
07h30 - Educativo
08h00 - Folclore do Japão - produção independente
09h00 - Pescadores do Brasil - produção independente
10h00 - Sessão Super-Heróis
12h00 - CNT Esporte - Edição Local
12h30 - RTV - Jornal Local
13h00 - Divisão de Rede: Jeannie é um Gênio e A Feiticeira (para quem não tivesse programas locais)
14h00 - Interligado - com Fernanda Lima (gerado de São Paulo)
16h00 - Tela Mágica ou Transmissão Esportiva
18h00 - TV Fama (gerado do Rio de Janeiro)
19h00 - RTV - Jornal Local
19h15 - Superpop Melhores Momentos - com Adriane Galisteu
20h45 - Jornal da CNT - noticiário de rede gerado de São Paulo
21h30 - CNT Esporte - Edição Nacional
21h45 - Festa do Mallandro - com Sérgio Mallandro (gerado de São Paulo)
24h30 - Perfil Especial - com Otávio Mesquita (gerado de São Paulo)
02h00 - Cinema na TV
04h00 - Puro Êxtase - produção independente
Domingo
07h00 - Religiosos e Televendas
11h00 - Sessão Super-Heróis ou Transmissão Esportiva
13h00 - Cowboy Brasil - produção independente
14h00 - Conexão Gospel - produção independente
15h00 - Conexão Sebrae - produção independente
15h15 - TV Costa Turismo - produção independente
16h15 - Zona de Aceleração - produção independente
18h00 - TV Escolha
20h00 - Friends
20h30 - Leitura Dinâmica (gerado de São Paulo)
21h00 - Bola na Rede - cada estado teria sua própria versão
23h00 - Show Business - produção independente com João Dória Jr.
24h00 - Tons do Brasil - com Plínio Oliveira (gerado de Curitiba)
01h30 - Cinema na TV
04h00 - Puro Êxtase - produção independente
Se levarmos em conta o volume de produção da CNT em três importantes praças (São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba), um considerável lote de filmes de longa-metragem e os artistas de apelo popular que a Tele-TV contratou para completar a programação, teríamos uma senhora quinta rede. Isso sem contar a parceria que a emissora paranaense firmara com a Confederação Brasileira de Vôlei, permitindo-lhe a transmissão das Superligas Masculina e Feminina, além da disposição em transmitir futuros campeonatos de futebol. Haveria programas para todos os tipos de público e esse projeto da "Nova CNT" que estou simulando seria bem-sucedido, o suficiente pra mídia considerá-la um "fenômeno de comunicação do ano 2000". Lógico que nos anos seguintes, a grade ia sofrer modificações, como qualquer outra emissora, com o entra-e-sai de importantes nomes do veículo.
Mas o destino quis o contrário, tanto a dupla quanto o político jamais fariam contatos. E se fosse de outro jeito? Os Martinez entrassem em contato com a Tele-TV, numa tentativa de manter-se no concorrido mercado paulista, meses antes de se despedir da TV Gazeta? Com um diálogo político a uma empresa sedenta por sucesso, o freio seria acionado e a quinta rede seria de fato a "televisão do ano 2000". É triste encarar os fatos. As tele-igrejas monopolizaram nossa televisão, a Rede TV! com uma grade parada no tempo é mais bem-sucedida na internet do que na própria TV, sem contar o arrendamento de horários a tele-evangelistas suspeitos e a CNT "flopou", submeteu-se as 22 horas diárias de arrendamento da TV Universal só pra bancar sua folha de pagamento (isso depois que José Carlos Martinez morreu num desastre aéreo em 2003).
Aliás, essa TV Universal, permeando a cada dia o poder público nacional, tá querendo monopolizar na marra o veículo usando sua ideologia religiosa fracassada e fraudulenta, mas não é pra tanto. Bastou primeiro ser proprietária da Rede Record, depois cria uma tal de Rede Família no interior paulista, na sequência gasta o que não tem pra manter a Record News no ar e não satisfeita, tem sua própria emissora 24 horas por dia para ainda arrendar tudo quanto é TV oxigênio pelo Brasil afora? Me perdoem os cordeirinhos do Macedão e seu genro (cuja ânsia pelo poder lhe credenciaria a corrida presidencial e ganharia na cara-de-pau), mas isso é extravagância demais (pra não dizer ostentação). Uma só emissora já basta. Por essas e outras é que defendo uma reforma legislativa nas telecomunicações brasileiras.
Moral da história: a pressa é inimiga da perfeição e CNT e Rede TV! poderiam ter sido uma ÚNICA emissora de televisão.
PS: Antes que eu me esqueça, agradeço a todos os seguidores por permitir com que este blog ultrapassasse a marca de 2 milhões de visualizações. Valeu demais!